Este sou Eu...

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Clarice Lispector descreveu em seu livro "Sopro de Vida" o que melhor define o meu EU...

25.9.11

O recado do menino de lá... quando cá esteve. Ricardo Camelo_Filósofo & Educador

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O RECADO DO MENINO DE LÁ

Também, como naquele conto, foi de “incerta feita o evento”. Numa loquaz manhã de outono saímos pelo sertão em busca de respostas às nossas indagações. Fomos em bando como o antigo costume que aprendêramos naqueles bancos onde, por horas, ouvíramos senhoras e senhores sisudos e austeros nos dizendo sobre o sentido da vida e seus percalços, o que eram as coisas e seus cheiros e temperos, suas cores e até do calor emanado dos motores que impulsionavam as maquinarias. Então em comum devotamos palavras religiosas e seguimos um curso que atravessou boa parte da cidade e nos fez desembocar junto a buritis e riachos que teimavam em formar pequenas lagoas despretensiosas, todas elas formando o número cabalístico e sensacional. Creio não ter atravessado nenhum rio, mesmo baldado que fosse, além de um breve córrego corrompido por uma ponte esconsa em suas intenções. Não sei se o ribeirão que cruzamos trazia em si aquilo que lhe dá nome ou que lhe subjaz, que lhe sustenta - pobre do mar, espécie de lagoa grande, que será teu anfitrião. A lógica da natureza ficou perdida com os primeiros pensadores gregos e seus enigmas obscuros e contraditórios, posto que o gênero humano ocupou seu lugar tornando caudatária suas exigências. Mas eis que à frente, virando à esquerda em determinado sítio, embrenhamos noutros morros e vegetações. Surgiram algumas florações outras, que nossas retinas pouco conheciam. Durante algum tempo instigados pela altura do sol vislumbramos pastagens e arredores do país dos bovinos que mugiam frases incompreensíveis e ruminadas - Talvez algum de nós os compreendia, mas guardou para si esse segredo. Adentramos o vilarejo, de lá fomos conduzidos a outro lugar que não trago na memória o percurso exato, chegamos então a uma espécie rara de formação geológica.
A terra naquele ponto fazia surgir uma cavidade úmida e agonizante que nos convidava a adentrá-la. Tomados pelo espanto fomos conduzidos ao seu âmago. Contados, respeitando o velho instrumento que nos transformava em números para a posteridade, fomos desbravando aquele não-lugar que ora fazia suas pedras soarem como sinos das capelas convidando às missas, ora transformava cidades possíveis de serem vistas ao longe e pelo anteparo do reflexo nas águas psicodélicas. Noutra vez surgiu uma cavidade como sumidouro do mundo, que nos resguardava. E noutros andávamos sobre uma camada inexplicável e oca. Seres imaginários pululavam das paredes e dos contrastes luminosos e sombreados emitidos pela luz obsoleta e intrometida. Paredes brilhantes faziam jorrar miríades naquele universo silente. Cortinas barrocas, inebriantes despendiam de abóbodas líquidas e cristalizadas. Brinquedos povoaram lúgubres imaginações. Elefantes. Pássaros. Morcegos. Deuses. Tudo aquilo que cabe nos subterrâneos da psiché. O nada e a nossa condição. Santuário profanado, saímos sem reverências. Diversos. Fora da caverna, tomados por outra realidade fomos alimentar o corpo. Fartados e nutridos, tal e qual tropeiros, partimos para outra aventura, esta, agora, comandada por meninas e meninos que diziam coisas mágicas tiradas do mundo ao nosso derredor. Encantados pelas fábulas criou-se em nós uma espécie de pirlimpsiquice, que nos fez andar em carros de boi, deitar nas camas do passado, ouvir as maitacas sinalizando bons augúrios e saber das veredas da vida e os sertanejos errantes que somos; que buscam e exercitam a poesia e a loucura e as contradições e acertos num mar de palavras e astúcias, que comandam um mundo que exigem um deus armado para enfrentá-lo. Fotos. Livros. Roupas. Cozinha. Panelas. Objetos inanimados giravam e nos dispensavam. Assim, absortos, atravessamos a rua em busca de uma estação e seus segredos. Cheganças e saídas. O carro de ferro levando mãe e filha de Sorôco. Lá instauraram-se novas indagações, calando outras ansiedades. Buscando um sentido seguimos pelos trilhos e deparamos espantados com animais gigantes brincando com crianças numa praça escondida por uma bruma que aquela tarde soube criar. Fizemos também nossa alegria sobrepujar cercados e cercanias e homo ludens vivenciamos aquele momento. E então já nos chamava o ônibus. Adentramos. Acomodamos. Por fim fizemos lá nossa última oração, na igrejinha do fim da rua. Também Apolo ia com sua carruagem quando partimos. Numa espécie de transe em trânsito dormimos e acordamos na mesma cidade da qual partimos na manhã. E como sabemos que “no mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade” fomos recebidos por um bailado entre Vênus e a Lua nos campos da abóboda celeste, no entardecer famigerado da urbe.
Foi assim o recado do menino de lá quando cá esteve.

RICARDO JOSÉ CAMELO DA SILVA (FILÓSOFO)